Embora hoje os Sleep Token possam parecer uma banda “da moda”, graças ao crescimento explosivo de ouvintes após os primeiros singles de Even in Arcadia, o meu vínculo com esta entidade musical começou bem antes da fama. Foi algures no final de 2019, talvez início de 2020 — certamente antes da pandemia — quando, numa viagem de carro, o algoritmo do Spotify me ofereceu The Offering (pun intended). Foi amor à primeira audição.
A partir desse momento, mergulhei de cabeça. A sonoridade expansiva, a fusão entre peso e doçura, e a entrega quase religiosa do vocalista Vessel criaram em mim uma ligação emocional com cada nota, cada silêncio. Em 2021 apaixonei-me por This Place Will Become Your Tomb, um álbum que considero um dos mais marcantes da minha vida, altura em que também comecei a minha coleção discográfica de Sleep Token. Quando Take Me Back to Eden os catapultou para outro patamar — tours internacionais, presença massiva nas redes e um fandom dividido entre adoração e teorias de conspiração — mantive-me fiel apenas a uma coisa: a sua música.
Curiosamente, apesar de toda a construção mítica em torno da identidade dos membros e do chamado lore, nunca foi isso que mais me prendeu. Para mim, a força dos Sleep Token reside na forma como canalizam emoção, intensidade e vulnerabilidade numa sonoridade híbrida que continua a desafiar rótulos. Even in Arcadia não é exceção — na verdade, representa talvez a maior viragem estética e emocional da banda até agora.
Aqui fica a minha leitura, faixa a faixa:
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1. Look to Windward
A abrir o disco, Look to Windward é, para mim, uma das faixas mais impactantes e completas do álbum – e talvez a que mais se aproxima da sonoridade dos trabalhos anteriores. A letra mergulha num conflito interior profundo, marcado pela frase “Will You Halt This Eclipse In Me”, um pedido desesperado para que alguém (ou algo) interrompa a escuridão crescente dentro de Vessel.
Instrumentalmente, a música atinge outra dimensão: a bateria de II é absolutamente arrebatadora, especialmente no final, que remete diretamente para o poder catártico de Take Me Back to Eden. O contraste entre a voz agressiva e distorcida de Vessel e os momentos de voz limpa — quase etérea — cria um efeito magnético, reminiscente de faixas como Vore ou Eden, onde o peso e a leveza convivem em perfeita tensão. Uma introdução imersiva que estabelece, desde o primeiro minuto, o tom emocional e sonoro da jornada que se segue.
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2. Emergence
Com Emergence, o primeiro single do álbum, os Sleep Token continuam a explorar novos territórios. A fusão entre metal e hip-hop marca o tom da faixa, criando uma energia única que mescla a agressividade das guitarras com a cadência rítmica do rap. A bateria é marcante, com grooves imponentes que sustentam toda a complexidade instrumental. O solo de saxofone de Gabi, da banda Bilmuri — que abriu para os Sleep Token na tour europeia — é a cereja no topo do bolo. Um exemplo claro da capacidade da banda para fundir estilos de forma original e impactante.
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3. Past Self
Talvez a faixa mais pop/R&B do álbum em termos de sonoridade, Past Self esconde, por baixo da sua superfície envolvente, uma letra carregada de introspeção. A canção aborda a fragmentação da identidade, a tensão entre evolução pessoal e nostalgia, e o peso das expectativas e críticas externas. Esta música é um retrato emocional de alguém que tenta encontrar-se num mundo onde é constantemente confrontado com as ações do seu “eu” antigo. É na ambiguidade dessa reconciliação incompleta que reside a força da faixa.
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4. Dangerous
Ao contrário de outras faixas mais introspectivas, Dangerous explora uma relação a dois, marcada por uma tensão emocional — quase destrutiva. Vessel canta sobre desejo com uma intensidade sussurrada, ao mesmo tempo que nos transmite os seus medos em relação a uma paixão que pode ser, em igual medida, libertadora e ameaçadora. A produção é polida e elegante, com um refrão que cola na cabeça. Um dos momentos mais íntimos do álbum.
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5. Caramel
Já conhecida do público por ter sido o segundo single, Caramel surpreende ao fundir o peso atmosférico do metal com a leveza rítmica do reggaeton. Liricamente, move-se entre o desejo e o desconforto das suas consequências — como se Vessel confrontasse, de forma velada, o peso da exposição pública. Há referências implícitas à fama e à dificuldade de gerir a vulnerabilidade sob os holofotes.
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6. Even in Arcadia
A faixa-título do álbum é, para mim, uma das mais marcantes — e uma das minhas favoritas. Aqui, os Sleep Token parecem fundir todos os elementos que os definem: espiritualidade, romantismo e apocalipse. O tom é épico e sombrio, quase religioso. “Even in Arcadia, you walk beside me still” — a frase parece admitir que, mesmo no paraíso, a dor (ou a memória dela) persiste.
Musicalmente, a faixa destaca-se por um piano delicado e melancólico, que serviu de base para uma das primeiras pistas deixadas nos teasers do álbum, sob a forma de partituras partilhadas com os fãs.
Esse detalhe reforça a sensação de que esta faixa é o coração emocional do disco — uma espécie de centro gravitacional onde todas as outras orbitam. A melodia é grandiosa, mas nunca exagerada. Há algo profundamente cinematográfico aqui, como se estivéssemos a assistir ao fim — ou recomeço — de tudo.
O final, com o som de um violino delicadamente inserido, é simplesmente sublime, elevando a faixa a um plano quase transcendente.
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7. Provider
À semelhança de Dangerous, Provider retrata uma ‘dança a dois’ — provocadora, intensa, marcada pela tensão entre sensualidade e obsessão, dependência e desejo. A letra explora a dualidade entre poder e submissão, com Vessel a assumir simultaneamente o papel de quem dá e de quem se entrega por completo. À primeira escuta, pode não parecer uma faixa de grande impacto, mas a sua força reside precisamente na letra: uma sedução silenciosa, carregada de perigo.
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8. Damocles
Contido musicalmente, mas devastador emocionalmente, o terceiro single Damocles carrega uma tensão latente que cresce até uma explosão catártica. A letra expõe vulnerabilidade, exaustão e frustração — Vessel questiona se alguma vez será suficiente. A referência à espada de Damocles, símbolo de ameaça constante, aqui transforma-se em metáfora interna – é um símbolo de instabilidade alimentado pela auto cobrança e o peso da exposição pública. A produção é subtil, densa, e amplifica o impacto emocional. Um murro no estômago — no melhor sentido.
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9. Gethsemane
Após uma breve busca, percebi que o título remete ao jardim bíblico da angustia, onde Jesus passou a última noite antes de ser traído – referência que não existirá ao acaso. Gethsemane é uma confissão dolorosa sobre amor não correspondido, esforço em vão e o reconhecimento de que certas relações estão condenadas. A entrega vocal de Vessel é despida e honesta, tornando esta uma das faixas mais emocionantes do álbum — especialmente para quem já amou profundamente (ou perdeu alguém que amava).
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10. Infinite Baths
A fechar, Infinite Baths é uma das faixas mais libertadoras do disco — e outra das minhas favoritas. Depois da dor, da raiva e do desejo, esta música soa a redenção. A metáfora dos “banhos infinitos” evoca uma purificação emocional, uma aceitação serena de quem se é agora. A canção cresce, brilha, expande-se — uma catarse sensorial e emocional. Mais uma vez, o trabalho de bateria é absolutamente genial e hipnotizante, com uma dinâmica precisa e emocionante, que guia a faixa até ao seu clímax.
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Conclusão
Com Even in Arcadia, os Sleep Token reafirmam por que são uma das bandas mais singulares da atualidade. Este é também o álbum onde exploram novas texturas e emoções – agora finda a trilogia dos primeiros álbuns e, aparentemente, a ligação de Vessel à entidade Sleep. Há uma mudança clara de foco: menos sobre o amor idealizado, mais sobre os escombros emocionais.
O que realmente marca este disco é o seu carácter introspectivo. Even in Arcadia revela um Vessel mais vulnerável, mais em conflito consigo mesmo — como pessoa e como artista. Há uma honestidade crua, uma transparência rara, como se a máscara deslizasse o suficiente para podermos entrever a turbulência que existe por trás dela.
Será este o álbum que separa os verdadeiros fãs dos que chegaram com o hype? Talvez. Para quem acompanha a banda há algum tempo, esta nova fase soa a evolução — uma jornada que muda, mas preserva a alma. Para quem chega agora, é um excelente ponto de entrada: um convite para mergulhar num universo onde vulnerabilidade e brutalidade coexistem, onde o sagrado e o carnal se tocam.
Que a viagem continue — para todos.
Worship